top of page
Antes e depois da chamada Lagoa da Cacimba ou Lagoa da Rebeca. Produção audiovisual pelo projeto Um olhar para os "Córregos e Lagoas de Balneário Camboriú" do Observatório de Interações no Ambiente - OiA.

Rios e lagoas de Balneário Camboriú
                              um paraíso soterrado

Na sacada do nono andar do edifício San Pietro, localizado na esquina da Avenida Brasil com a Alvin Bauer, em Balneário Camboriú, o senhor de 68 anos e cabelos grisalhos aponta através da janela, relembrando a antiga paisagem do lugar onde cresceu e viveu. Embaixo dos óculos de grau, os olhos azuis de Carlos Alberto Schlup, também conhecido como seu Tanaco, quase conseguem refletir a memória do rio azul que na década de 60 corria abundante ali em frente e hoje se encontra soterrado pelo concreto.

 

O engenheiro mecânico aposentado mora no município de Balneário Camboriú desde 1963, quando tinha seus 11 anos. Assim como outras famílias da época, a sua veio de Rio do Sul para tentar a vida na cidade. Carlos conta que seu pai sempre trabalhou com madeira e que, antes de se mudarem, construiu uma casa para a família na rua 1.011, na época um beco sem saída, próxima de um dos rios que cruzavam a cidade, o chamado Ribeirão, hoje conhecido como Rio Marambaia ou até Canal do Marambaia.   

744E9F54-DF4E-485B-BD6F-5E64460EC115.jpg
Carlos Alberto Schlup na varanda de seu apartamento, em frente à fotografias antigas suas e de Fernando Delatorre, que possui como decoração e ilustram o seu passado e o passado da cidade. 
Imagem: Yasmim Primieri Kochhann.

A Dubai Brasileira que deveria ser Veneza 

O que nem todos os turistas e, muitas vezes, os próprios moradores sabem é que a antiga Balneário Camboriú, hoje popularmente chamada de "Dubai Brasileira" devido aos enormes prédios, era repleta de rios e lagoas ao longo de sua extensão, quase como uma verdadeira "Veneza Brasileira" perdida. Havia o grande Rio Camboriú e vários outros córregos menores que desaguavam nele ou no Rio Marambaia, formando um paraíso de águas e lagoas exuberantes

Seu Carlos relembra que na época o rio não só era utilizado pelas pessoas, mas também respeitado. Em sua juventude, ele mesmo chegou a construir uma canoa de madeira para navegar até a grande lagoa da Cacimba, também chamada de lagoa da Rebeca, que hoje pode ser vista da janela do seu prédio. A lagoa, que era o meio do caminho do Rio Marambaia, ficava localizada onde hoje é a praça da Cultura, na Avenida da Lagoa, nome que homenageia o passado. "Eu vinha de canoa de lá de casa até aqui onde hoje fica a praça. Não era tão comum fazer isso, mas a molecada sempre inventava moda", explica em meio a um sorriso. 

 

Além dos inusitados passeios de canoa, seu Carlos conta que também costumava pescar no local. Nos anos 60 diversas espécies de peixes tinham o local como moradia. "Eu me lembro que lá tinha cará, que é um peixe parecido com a tilápia, tinha jundiá, mas não muito viscoso... E aqueles camarão pitu que são pretos com umas garras cumpridas...", relembra. 

A ponte sem rio 

E vale lembrar também que todo o rio é vivo e precisa de espaço... Nos dias de muita chuva, a lagoa da Cacimba transbordava pelo aumento do volume de água e era obrigada a extravasar para o mar pela Praça Tamandaré. Por conta do córrego indeciso, que ora surgia e ora desaparecia, foi construída uma ponte no local onde hoje fica a praça, para facilitar a travessia quando ele decidisse aparecer. 

O arquiteto e urbanista Gabriel Gallarza, que participa de projetos na área de patrimônio cultural e ambiental de Balneário Camboriú, como o Um olhar para os Córregos e Lagoas de Balneário Camboriú” e Retratos do Camboriú, explica que, devido ao seu histórico, a Praça Tamandaré é um lugar com grande tendência a alagamentos e justamente por isso se tornou uma praça. "Praças e áreas livres normalmente são locais onde no passado havia rios, por isso tornam-se áreas comuns vazias. Pode-se notar isso em qualquer cidade do mundo", complementa. 

Seu Carlos relembra que a lagoa que se formava eventualmente na Praça Almirante Tamandaré chegou inclusive a ter nome, Lagoa da Ponta. Segundo ele, até os dias de hoje quando chove forte transborda muita água por ali.

 

"Era uma briga com a maré e a água que saia da lagoa. Quando dava enxurrada e a maré tava cheia, entrava água de lá. Por isso também as casas sempre foram construídas para trás de onde fica o contorno da praça atualmente", complementa. 

759 - Ponte sobre a lagoa aonde hoje é
Ponte sobre a lagoa onde hoje é a Praça Almirante Tamandaré, década de 1940. Acervo histórico de Balneário Camboriú.
Atual praça Almirante Tamandaré em 1948. Acervo de Antonio Jorge Borba.
1948 - atual Praça Almirante Tamandaré

Onde nasce o Ribeirão?

Gabriel conta que a nascente do ribeirão nasce na rua 2500, onde hoje há um bosque dentro da escola Centro Educacional Municipal Vereador Santa. Em 2005 esse bosque foi transformado em uma área de preservação, que hoje está cercada. "O rio nasce ali e vai cruzando a cidade, hoje de forma totalmente subterrânea. Passa pela igreja Santa Inês, pelo camelódromo, cruza a Avenida Brasil e surge atrás do Shopping Atlântico, onde formava a lagoa da Cacimba e continua até o Pontal Norte", contextualiza o arquiteto.

Já seu Carlos tem uma versão diferente sobre o local da nascente do rio. Segundo ele, a história de que a vertente seria no colégio Vereador Santa não é verdadeira, pois na realidade ele nasceria entre as ruas 2.438 e 2.448, acima da terceira avenida, vindo em diagonal para a Avenida Brasil. Na versão do aposentado o rio passa na frente do camelô da Igreja Matriz, atravessa a avenida Brasil, correndo por trás do hotel Schroeder, para então entrar na praça, antiga lagoa da Cacimba, e seguir até desaguar no Canal do Marambaia no Pontal Norte, na época chamado de Canto da Praia. 

164330864_10214778716580924_549835239126
Costão do Canto da Praia, onde o Ribeirão encontrava o mar. Imagem: João Luiz Beduschi Filho Retirada da página do Facebook Fotos Antigas e História da Praia de Camboriú.

Após o longo trajeto, quando o ribeirão finalmente chegava no Canto da Praia, era possível presenciar a vista de um belo espraiado onde a água doce do rio se encontrava com a água salgada do mar. Seu Carlos conta que adorava frequentar o local, conhecido como Ribeirão Lagoa do Canto. "Eu tinha um caminhãozinho de madeira que meu pai fez, saia ali de casa com ele e ia pra aqueles lados. Era incrível aquela paisagem do rio desembocando na praia", relembra. 

 

O ribeirão era tão largo quanto a largura atual da Av. Brasil, com aproximadamente 30 a 35 metros de largura e cerca de 3 a 4 metros de profundidade. E para isso contava com a participação de diversos córregos e lagoas que desaguavam nele. Um deles era uma pequena lagoa na rua 1.061, de onde saia um córrego que entrava no Ribeirão nas proximidades da rua 1.101, ajudando a compor a paisagem da lagoa da Rebeca. 

O arquiteto Gabriel Gallarza conta que o rio era formado também com a ajuda de um outro córrego chamado Ribeirão do Nin, que vinha do morro do bairro Ariribá, com nascente nos fundos da rua Cara Cara. Os desavisados podem achar que o nome desse córrego fosse 'Dunin', mas conversando com moradores locais do bairro dos Pioneiros entende-se que na verdade o nome desse córrego se deu por conta de um antigo morador nativo que vivia no local e chamava-se Nim. De tanto o pessoal falar "vamos pescar no ribeirão do seu Nim", o nome acabou ficando, mas não de forma oficial. 

 

"Onde hoje fica o hotel do Bosque na Av. Brasil é o local em que esse outro rio deságua no Rio Marambaia. Ou seja, é um rio entrando em outro rio, o que aumenta o volume de água, por isso ali formava uma outra lagoa, que hoje praticamente não existe'', explica o arquiteto. 

164853994_10214786813143333_487106989516
Vista aérea do lado Norte de Balneário Camboriú, cortada pelo Ribeirão. Imagem: João Luiz Beduschi Filho 
Retirada da página do Facebook Fotos Antigas e História da Praia de Camboriú.

Essa rua tem o nome de um rio que a cidade sufocou

Toda essa paisagem exuberante composta pelos rios, córregos e lagoas abundantes ao longo da cidade, infelizmente hoje existe apenas na memória e nas imagens. Na década de 70 até chegou a ser realizado um estudo para criar um enorme parque linear nas margens do ribeirão, repleto de praças, campings e remansos cruzando todo o centro de Balneário Camboriú. Porém, conforme o turismo e o setor imobiliário foram crescendo na cidade, consequentemente foi-se alterando a paisagem do rio, que cada vez mais era deixado de lado, ou melhor, debaixo... Dos grandes prédios.

 

Hoje ainda é possível vê-lo clamando por um pouco de espaço em meio às construções que foram feitas praticamente em cima dele. Para o arquiteto Gabriel, o problema é justamente a falta de uma área de extravasamento do rio, para que quando chova ele possa alagar um pouco.

 

"O pessoal interpreta que alagamento de rio é um problema, mas alagamento de rio é uma coisa natural. Se chove, alaga. O problema é você colocar a cidade em cima do rio e da área onde é pra ele alagar", ressalta.

69E195A3-772E-47FB-AA9E-0D598AE24D31.jpg
Ribeirão atualmente correndo estreito em meio aos prédios e casas, na rua 1131 no centro de Balneário Camboriú.
Imagem: Yasmim Primieri Kochhann

Oficialmente existe uma regra de ocupação de território, em lei federal, estadual e municipal, que defende que todo curso de água deve ter uma margem de preservação. Mas pelo jeito essa lei não tem sido aplicada a Balneário Camboriú, que inclusive sofre de alagamentos em alguns pontos da cidade por conta da falta de espaço para extravasamento do rio. 

 

"Essa rua tem o nome de um rio que a cidade sufocou. A vontade do rio de voltar às vezes sacode de algum lugar. Ele dorme até a chuva chegar, mas a tempestade vem anunciar. E a enchente lembra a população que o que é rua antes era vazão".

 

A música Iarinhas, da cantora e compositora brasileira Luiza Lian, exemplifica bem as consequências e a angústia de um rio que foi sufocado, silenciado e esquecido, assim como aconteceu com o ribeirão. 

 

Gabriel acredita que futuramente será necessário destruir parte da cidade de Balneário Camboriú para renaturalizar os rios, trazendo-os de volta a céu aberto, com áreas de alagamento preservadas e mata ciliar nas margens. "Isso é obrigatório, não uma opção. Certamente vai demorar pra acontecer, talvez a gente nem esteja aqui pra ver. Mas em algum momento essa será a única solução. Até porque não existe cidade saudável sem rios preservados", comenta. 

 

Enquanto esse dia não chega, seguimos contemplando a beleza do passado e ansiando por dias melhores para os rios de Balneário Camboriú, que seguem correndo e sobrevivendo nos pequenos espaços que ainda restam pela cidade… Sem nunca esquecer que ele sempre esteve aqui, muito antes de nós.

Rios de Balneário Camboriú em pauta

Apesar de terem sido sufocados, os rios de Balneário Camboriú não foram totalmente esquecidos. É importante ressaltar que há projetos que visam justamente identificar, reconhecer e valorizar os corpos hídricos da cidade. É o caso de Um olhar para os Córregos e Lagoas de Balneário Camboriú” e “Retratos do Camboriú, financiados pela Lei de Incentivo à Cultura e produzidos pelo Observatório de Interações no Ambiente – OiA.

Ambas as pesquisas visam ter um olhar amplo sobre a temática hídrica de Balneário Camboriú e fazem isso ao transitar por diversas áreas do conhecimento na sua produção, como a Arquitetura, Urbanismo, Meio-ambiente, História, Jornalismo e Fotografia. Na busca de auxiliar no reconhecimento e na construção desta identidade, desde 2016 o OiA realiza o projeto Retratos do Camboriú. 

Como resultado, um dos seus trabalhos foi a produção de um mini-documentário que possibilita visualizar todo o percurso hídrico do rio e as manifestações culturais que foram e são desenvolvidas em suas margens até desaguar no mar, de forma ilustrativa e quase poética. Para isto, foram abordadas as múltiplas interações que a população, os visitantes e a própria gestão municipal estabelecem com essa paisagem.

Ao longo desses anos de pesquisa, foi produzida uma grande quantidade de material sobre essas paisagens, o que gerou diversos produtos culturais como o documentário acima, relatórios, fichamento, blog, palestras e até um mapa-infográfico do rio. O mapa é uma espécie de síntese visual da paisagem hídrica, que indica os elementos que se destacam, acompanhados de fotos e textos descritivos, introduzindo o observador no reconhecimento deste importante patrimônio local.

mapa-infografico-retratos-do-camboriu.jp
Mapa-infográfico do Rio Camboriú. Projeto Retratos do Camboriú - Observatório de Interações no Ambiente – OiA.
Clique aqui para ver o mapa completo no site.

Já o projeto 'Um Olhar Para os Córregos e Lagoas de Balneário Camboriú' apresentou os resultados de suas atividades desenvolvidas durante os anos de 2017 e 2018 através da publicação de um livro, que leva o nome do projeto. Assim, todo o conteúdo pesquisado pode ser consumido de forma acessível, servindo como base para um diálogo ainda mais edificante sobre os rios, córregos e lagoas, não somente da cidade de Balneário Camboriú, como também do estado e de todo o mundo.

livro-web.jpg
Mapa-infográfico do Rio Camboriú. Projeto Retratos do Camboriú - Observatório de Interações no Ambiente – OiA.

Projetos como esses ajudam não somente a compilar informações importantes sobre a paisagem cultural e hídrica da cidade, como também promovem a reflexão ao analisar a relação destes corpos com a cidade e sua população. Afinal, quanto mais o assunto é abordado com propriedade, maior torna-se o debate sobre a transformação da paisagem ocasionada pelo desenvolvimento urbano vertiginoso de Balneário Camboriú.

bottom of page